São Paulo Entrevistas

Alessandra Montagne: uma brasileira no coração da gastronomia francesa

Neste Dia Internacional da Mulher, destacamos a chef que conquistou Paris com receitas criativas e cheias de personalidade

Neste 8 de março, em que celebramos o Dia Internacional da Mulher, é uma missão quase impossível listar todas as mulheres que vêm se destacando nas relações que envolvem França e Brasil, seja no campo dos negócios quanto na cultura ou nos esportes. Optamos, então, por homenagear uma personalidade do mundo da alta gastronomia, campo em que a liderança feminina foi, por muito tempo, uma exceção.

A chef Alessandra Montagne é um dos nomes cada vez mais conhecidos no cenário gastronômico da França, onde se radicou há mais de 25 anos. Nascida no Morro do Vidigal, no Rio de Janeiro, ela foi criada pelos avós em Minas Gerais. Aos 16 anos, enfrentou uma gravidez precoce e um casamento abusivo. Determinada a mudar de vida, juntou dinheiro vendendo coxinhas até conseguir ir para a França, onde já moravam a mãe e o padrasto. Inicialmente, seu objetivo era aprender francês, mas ao se apaixonar pela gastronomia, ela decidiu seguir esse caminho e nunca mais deixou o ramo.

Hoje, Alessandra está à frente de dois restaurantes na Cidade Luz, o Tempero e o Nosso, e chamou a atenção de ninguém menos que Alain Ducasse – foi ele, inclusive, que a convidou a assumir a operação de um dos restaurantes do Museu do Louvre.

Em entrevista exclusiva para a CCIFB, ela conta um pouco de sua trajetória, como conquistou seu espaço entre os maiores chefs franceses, como vê a sustentabilidade na gastronomia e como a presença feminina moldou sua visão de cozinha:

 

O que a motiva em sua trajetória, desde o Brasil até os grandes restaurantes de Paris, e como suas raízes brasileiras influenciam sua gastronomia?

Sempre me doei para as pessoas através da comida. Isso reconforta, é uma maneira de falar com as pessoas, um idioma universal. E eu sempre busquei entender como fazer uma mestiçagem com a cozinha brasileira, respeitando os códigos da cozinha francesa, porque eu queria colocar as minhas lembranças e o meu temperinho da roça naquilo que faço. É a minha identidade, minha assinatura. Então em todo o meu trabalho tem sempre uma pitadinha de Brasil: sirvo coxinha, feijoada, pão de queijo com caviar. E os franceses amam!

 

Como você conseguiu conquistar seu espaço em um ambiente ainda predominantemente masculino, e que conselho daria para outras mulheres que querem seguir na gastronomia?

Eu nunca aceitei o “não” como resposta. Brinco que, se uma porta se fecha, eu entro pela janela. Além disso, na minha trajetória eu tive a imensa sorte de trabalhar com chefs dispostos a ensinar quem estava lá para aprender e trabalhar com seriedade. Não eram ambientes tóxicos ou hiper masculinizados - mas sei que nem para todo mundo é assim. Meu primeiro emprego na cozinha foi no Yam’Tcha, restaurante com uma estrela Michelin da chef francesa Adeline Grattard, cujo marido era de Hong Kong. Com ela, além de aprender a fazer essa mistura entre a culinária de dois lugares diferentes, vi que era possível conciliar a maternidade e a vida profissional e que há espaço para o equilíbrio entre as duas coisas. Fiquei lá um tempo, depois trabalhei com o William Ledeuil, que é um francês que também tem uma estrela Michelin e é apaixonado pelos países do nordeste asiático, como a Tailândia. Eu queria ver como ele integrava essa paixão. Foi super interessante e me inspirou muito.

E, claro, tive essa oportunidade de ouro de trabalhar com o Alain Ducasse, que conheceu minha cozinha no Tempero, passou a me convidar para fazer diversos eventos com ele e agora me chamou para comandar um restaurante no Museu do Louvre. Então o meu conselho para as mulheres que querem seguir na gastronomia é: preocupem-se em estudar e aprender, treinem, sejam determinadas. Ao longo dos anos, as mulheres foram ocupando espaços no ambiente de trabalho, se impondo com delicadeza e sabedoria. Precisamos continuar esse movimento.


Como a presença feminina, desde sua avó até as mulheres da sua equipe, moldou sua visão de liderança e sua abordagem na cozinha?

Aprendi a cozinhar na roça com minha avó ainda pequenina e desde então a cozinha é onde me sinto mais livre e protegida. É na cozinha que me sinto no meu lugar. E minha característica singular é que faço uma comida participativa, coisa que vem muito do feminino, eu acredito. Minha equipe pode participar do menu, sugerir receitas e ingredientes. Para mim é importante essa generosidade de deixar as pessoas criarem e testarem as ideias delas também. É uma visão de liderança inclusiva, que tem escuta e abre espaço para o outro.

 

Como suas experiências de trabalho voluntário, especialmente cozinhando para pessoas necessitadas, influenciaram sua filosofia de cozinha e gestão de seus restaurantes?

Primeiro vou contar uma história. A primeira vez que eu fiz comida na França pra vender foi uma feijoada em um festival de música. Apareceu essa oportunidade, só que eu fiquei com vergonha de cobrar as pessoas. Fiquei com tanta vergonha que quando a primeira pessoa me deu o dinheiro, pedi para quem estava me acompanhando dar o troco. Fiquei toda sem graça, sabe? Comer, para mim, é como beber água, e não fazia sentido cobrar alguém para dar um copo de água.

Claro que depois isso se tornou uma profissão e um empreendimento, portanto, meu sustento. Mas sempre achei importante seguir me dedicando a cozinhar para pessoas e grupos em situação de vulnerabilidade. O acesso a uma alimentação de qualidade e feita com amor transforma a vida das pessoas. Falo com conhecimento de causa porque a comida transformou a minha.

 

O que motivou a decisão de eliminar as lixeiras em sua cozinha para combater o desperdício de alimentos e como você envolve sua equipe nesse processo? Além disso, qual a importância da valorização de produtores locais na sua prática culinária?

Aprendi na roça a não desperdiçar nada, então para mim foi simplesmente natural. Sempre tive composteira, desde que abri meu primeiro restaurante, em 2012, e faço uso integral de tudo. E isso vai além daquilo que compramos para abastecer a cozinha. A mucilagem que uso no prato da lagosta, por exemplo, é um produto normalmente descartado na produção de chocolate. Eu compro da fábrica aquilo que seria descartado e transformo em comida. E como essa é uma prática minha desde o início, a equipe veste a camisa e também traz novas ideias para fazer o aproveitamento integral do alimento. É um processo criativo muito estimulante!

Já a valorização dos produtores locais tem um motivo muito simples: se tenho produtos excelentes feitos à minha volta, por que eu iria buscar o que quer que seja em outro lugar? A riqueza dos produtos artesanais dessa região é imensa. A única exceção que abro é para os produtos brasileiros, como o polvilho, que compro na Madame Brésil, uma épicerie maravilhosa da chef Ana Luiza Trajano aqui em Paris.

 

O que o Dia Internacional da Mulher significa para você, especialmente por ser o seu aniversário, e qual mensagem você compartilharia com mulheres que enfrentam desafios entre culturas?

Pra mim é muito simbólico fazer aniversário nessa data porque, tendo nascido mulher, preta e pobre no Brasil, eu nunca tive as estatísticas a meu favor. Precisei lutar muito por tudo - mas nunca, em momento algum, considerei a possibilidade de desistir. E nunca esqueci de onde vim. Isso é muito importante. Por isso a mensagem que compartilho com mulheres que enfrentam desafios entre culturas é: valorizem sempre suas raízes, sua origem e sua história de vida. As mulheres já vêm ao mundo com o desafio de viver em um lugar onde são marginalizadas. É tendo orgulho de nós mesmas e de quem somos que vamos criar uma realidade diferente para as próximas gerações.

 

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